Pensamento, aborto e fé, segundo Simone e Zilda.
“AS MULHERES SÃO ACUSADAS DAQUILO DE QUE SÃO VITIMAS”

Para falar da experiencia que eu tive com Zilda, poderia iniciar com palavras duras se a minha intenção fosse o confronto radical com aquele grupo. No entanto decidi não pagar na mesma moeda assumindo, ao que me parece, uma tarefa fadada ao fracasso. Ao evitar o mesmo nível da agressão a qual fora vitima, considerei o silencio a atitude sensata para dar conta provocações. Ouvi atentamente:
"Elas que morram!"
Estas foram as últimas palavras que ouvi de Zilda Arns. E partirei delas.
Últimas palavras dentre outras impublicáveis. Essa atitude, aliás, reforça a tendência de moralização religiosa recobrindo ocupações da vida privada. Nada mais que uma reserva de mercado justificada na ideia de que o outro é uma oportunidade de negócio bem mais interessante do que um verdadeiro elo social como de fato deveria ser. Eis.
Ainda que considerasse o excesso, hoje entendo claramente o significado daquelas palavras. Elas se aproximaram de uma confissão. Confissão no sentido religioso da palavra. Foi assim que Zilda veio, cheia de rancores e ódio.
Quando começamos o diálogo privado acompanhado por oito freiras, não quis referir-me ao obvio. Isto é, a estimativa do Ministério da Saúde sobre abortos clandestinos. Procurei mostrar com amor e perseverança (ao lobby no Conselho Nacional de Saúde em prol da ostentação empreendedora da politica de eugenia positiva) o ponto cego que não chega ao debate publico.
Disse-lhe, que não havia como justificar: que o Brasil, com 1/7 da população chinesa pudesse ser campeão de partos no mundo! Impensável, ainda mais justificar as consequências da concentração de natalidade em bolsões de miséria 600% acima da média nacional. Fato que inviabilizaria qualquer politica que tentasse equalizar a oferta e a demanda de creches, ou enfrentar a evasão escolar, por exemplo. Entre os quais 75% dos casos se referem a gravidez na infância, meninas entre 9 e 15 anos.
Se a violência da qual fora vitima tivesse sido motivada apenas por isso, juro, não tive a intenção de ofende-la com a verdade. Era apenas a verdade. Não posso crer que o destempero da religiosa tenha sido provocado frente a indagações legitimas de alguém que dedicou-lhe respeito e admiração.
A zombaria, penso eu diante do desvelamento que não se concluiu, sem dúvida, pretendia ocultar a estratégia, transformar o debate franco em um monologo apenas, cujo teor desconsidera a sociedade. Foi assim que prestadoras de serviços assumiram a aplicação da Lei de Planejamento Familiar, Lei Federal n° 9263 de janeiro de 1996. Infâmia consentida sob silêncio do Ministério Publico Federal!
A posição que ora esclareço, não trata de acerto de contas, mas do registro de uma voz dissonante em defesa da vida! Em um país com imenso desequilíbrio, a vida teria a função da expansão da base de consumo. Novos consumidores-contribuintes. É absurdo, mas a violação dos Direitos Humanos se daria pela obrigação permanente do nascer a qualquer custo. Com o acesso a Lei de Planejamento Familiar comprometido, o filantropo-capitalismo avança sob o estigma do pecado e da culpa.
Vale relembrar a cena emblemática veiculada, da menina com poucos dias sendo resgatada no Lago da Pampulha. Arremessada para morte pela própria mãe. Porém o saco, boiou.
A questão é, quem seria capaz de garantir quantos recém-nascidos não tiveram a mesma sorte e estão no fundo do lago, Zilda?
Escrevo para deixar claro que não sou cúmplice desta situação gerada pelo interesse econômico, manipulada por gente de moral duvidosa que sabe questionar apenas o que lhes convém. Orgulhosos por este modelo de humanismo ultrajante.
Sou contra o aborto, porém, as pessoas devem responder pelos seus atos e carregar a própria cruz, a própria culpa!
“O não nascer e a obrigação do nascer”
Simone de Beauvoir, filosofa, deixou vasta obra na qual reflete sobre as lutas da mulher e expõe as contradições deste processo da busca pela liberdade.
Em seu livro “O Segundo Sexo”, volume dois, intitulado “A Experiência Vivida” diz inicialmente:
“Ninguém nasce Mulher; torna-se Mulher”
De maneira simples ela discorre sobre o tema, elencando fases da vida da mulher desde o nascimento e arremata:
“Ser Mulher é uma imposição social”
Fala que a maternidade é estimulada desde a tenra infância. Quase a totalidade das meninas recebe bonecas de presente em datas festivas. O que significa isso? Enquanto vai estabelecendo novos conceitos na construção de um futuro possível, Simone ainda nos diz:
“A maternidade não é uma vocação natural da Mulher”
É claro que expõe a fragilidade das relações, mas também a violência e o equívoco na construção da sociedade familiar dizendo:
“Que muitas vezes as piores companhias que um filho pode ter são seus pais”
Porque resgatei Simone, o que há de atual nesses conceitos acerca da condição feminina que deve ser apresentado?
Acredito que eles devem ser debatidos, por tratar de questões estruturais que envolvem muito mais do que reflexões filosóficas ou religiosas. É a própria busca por uma sociedade mais justa, embutida na ideia de nação.
Dessa forma, participei da XIII Conferência Nacional de Saúde,"representando a cidade de São Paulo". Evento grandioso pelo tamanho e diversidade, mas pobre no conteúdo. Temas importantes que necessitavam apreciação com lupa dos representantes colegiados, nem foram pautados.
Encontrei Zilda, justamente quando apresentei uma proposta para Redução da Maioridade para efeito de acesso a Lei nº 9263 de Planejamento Familiar, Lei Federal de 1996 a fim de promover Direitos Humanos. A minha proposta reduzia para 16 anos e 1 filho, mas, foi violentamente retirada da pauta.
De certa forma as forças políticas se empenham na manutenção do que aí está, para que a relação continue a mesma. Afinal quando nos reproduzimos de maneira irresponsável não reproduzimos somente vida, reproduzimos e aprofundamos as desigualdades. A falta de oportunidades, a miséria, a fome, o desemprego, as DST/Aids e a banalização da violência.

Essa é a verdade da qual o Estado tenta livrar-se, a eugênia positiva. Absolutamente incompatível com a ideia de um futuro melhor. Submetidos a ela incorporamos em 40 anos, 120 milhões de pessoas a nossa sociedade! Fontes inesgotáveis de poder para o filantropo-capitalista, cujo cartel explora a reprodução das desigualdades.
Os indicadores de Aids também comprovam essa tese. A doença em queda em muitas regiões do mundo, enquanto no país simbolo no combate da doença, cresceu a medida que os recursos são aumentados. Por quê?
Como todo negócio, essas interações reproduzem a própria demanda no sentido estrito de não haver nenhum compromisso com a superação dos problemas, apenas a retroalimentação da exploração.
Vida que segue.
Claudemir Sereno,
(*) Passados 2 anos deste episódio lamentável resolvi falar no I Seminário em Políticas de Saúde da Mulher do Município de São Paulo realizado no COREN-SP no final de 2009, 30 dias antes do falecimento de Zilda Arns.
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