Glória à Deus nas alturas!

Naquele corredor me dei conta... estávamos próximos novamente, dali podia avistar o quarto. A medida que seguia ao seu encontro o mau cheiro ficou insuportável, mesmo assim continuei preparado para o pior. 

Ao chegar abri a porta lentamente e perguntei por Glória.

Sim, era ali! Responderam. 

Ela me aguardava! 

Finalmente, autorizado, entrei.

Por mais que tentasse me prevenir, foi tudo em vão. 

A cena impossível de se imaginar. 

Diante de mim; cinco, seis macas, desarrumadas, coladas umas nas outras, ocupadas por seres humanos em condições sub humanas. 

Estavam acomodadas naquele pequeno cômodo, sem janela ou ventilação, o que em parte ajudava a explicar o mau cheiro. 

Passei rapidamente os olhos pelo quarto da enfermaria a procura dela, enquanto me desvencilhava das macas. 

Naquele momento senti o fracasso, que veio como um profundo mal estar. A condição daquelas mulheres era de cortar o coração, por isso entristeci. 

Então, me questionei em silêncio,

 "Apesar de todos esses anos de luta, como havíamos chegado àquele estado de coisas?"

Rapidamente o silêncio foi quebrado, ouvi uma voz. 

Era, Glória! Tímida, quase sem força, mas a voz era dela. O sotaque confirmava isso:

"Meu loro, (sic) venha, cá! Venha, cá!" 

Lá estava ela, do outro lado daquela confusão de macas. Cumprimentos e licenças, movimentei delicadamente algumas para cá, outras, para lá, até chegar a minha querida amiga. 

Ela mal podia mexer-se. Estava muito abatida. Aliás, pelo que pude perceber, era o estado geral de todas elas. 

Ao me aproximar, disse-lhe, "Olá, Glória! Como está?"

Tentando ser agradável, ela respondeu, com a voz trêmula: 

"Ooooh! Meu louro, meu lorinho, venha aqui."

"Me abrace, me abrace..."

Abraços e beijos, desesperados... tantos que perdi as contas.

Em seguida, conversamos, bem baixinho, em tom confessional tentando não incomodar as demais. Falamos bastante sobre o passado. O inicio de nossa amizade e quantos anos haviam se passado desde aquela época. 

Glória falou, ainda de sua vinda para São Paulo, a difícil vida na favela, a doença das filhas à bebedeira do marido. Enfim, falou da luta da vida toda. 

Tim-tim, por tim-tim, revisamos o passado. Sem ilusões. 

Mesmo porque já não havia mais futuro para nós. Sabíamos pelo modo do falar e do olhar. Éramos cúmplices em vida, nos despedindo pra sempre. Era a última vez.

Contudo, antes que o tempo se esgotasse, num gesto de grandeza e coragem, ela deixou o passado para trás e apontou o futuro. 

Sem medo, ou ressentimentos, diante da própria morte, apaziguada e lúcida, com um sorriso nos lábios e um brilho especial no olhar, descreveu-me, a presença do fim.

Ali, experimentamos uma alegria imensa. 

Afinal, ela que levou a vida tão a sério, abater-se agora seria impensável. Absolutamente nada era mais importante para ela. 

"Sorrindo. Foi assim que, concluímos o nosso tempo juntos. Pouco depois, ela morreu."
Ficou a grandiosa lição e esta foto. 

À medida que vamos conquistando a maturidade tornamo-nos mais jovens.

Jamais deixei de encarar a vida como uma espécie de luz, que recebemos com a missão de leva-la ao futuro, estampada no brilho do olhar. 

Esta é a marca que identifica aqueles que fizeram o seu dever.

Glória, foi desses seres essencialmente espiritualizados, sensitivos, que jamais abriram mão do sagrado compromisso para com a vida.

Glória, ADeus!

A minha admiração e saudades eternas. 


Claudemir Sereno. 

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