Não recomenda-se o Amor para os fracos de espírito.

PAI


Em memória de Waldemar Sereno e Menca Ida Tanganelli Sereno.


“O caminho humano rumo ao divino visa uma sabedoria prática que aproxime homens e deuses, no nível do trabalho, do confronto diário com a natureza, no comércio com outros homens e na vida familiar.”

O que havia de tão especial naquele dia. Na casa onde passei a infância tinha um corredor que ligava a cozinha a sala. Foi ali, perto das seis da matina de uma manhã fria, perdida na memória que não quer passar. Ali, eu o vi pensativo e ficamos frente a frente sem nada dizer.

A boina, a blusa, a barba feita, o sorriso enigmático. Aura de mistérios que anunciava coisas que eu não tinha condições de entender. Preste a sair, ele hesita e volta. Fixa-me o olhar novamente, como jamais o fizera antes e lança-se definitivamente porta afora, deixando para trás um rastro de silêncio e dúvida. 

Desse dia em diante, eu vaguei de mãos dadas com a solidão no vazio.

Alegra-me observar a imensidão do mundo, deitar no chão à noite e ver infinito fluir em suas rupturas incessantes reduzidas ao simples juízo do meu olhar. Ou, brincar com a grandiosa obra de Proust tocada no essencial daquilo que eu ignoro, o tempo. De qualquer forma, em todos esses momentos a renovação linear do tormento ao modo de Prometeu se faz presente como se ele não existisse.

Seja como for são caminhos solitários, onde separação e encontro se comunicam pela porta do tempo. Mas, qual seria esse tempo?

Como bem disse, William Ernest Henley, em seu poema, "Invicto", sobre ser dono de seu destino e o capitão de sua alma." 

Recentemente, visitei a Pinacoteca do Estado na Estação da Luz. O tempo, obrigou-me a passar pelas obras como se estivesse viajando de carro, olhando a paisagem pela janela. Sem nada acontecer.  Uma, depois outra, depois outra, uma série delas... 

Até que este belo quadro capturou minha atenção. Óleo sobre tela datado de 1888, natureza morta de Estevão Silva (1845-1891).


”A natureza morta representa objetos não vinculados a narrativa que, silenciosamente, registram e documentam uma época e o modus vivendi, assim como aspirações de uma classe”.

Ao toca-la com os meus olhos, o passado atravessou a porta do tempo e trouxe aquela criança de volta a vida. Imediatamente vinculei-me a narrativa perdida a muito. Compreendi afinal no silencio da pronuncia, palavras esquecidas, estirpe, descendência e tradição, as quais em essência eram as molduras para uma obra inacabável. Uma ética. 

Meu pai morreu naquele dia trabalhando na reforma de uma residência no bairro de Santana, em São Paulo. Um infarto tirou-o de combate, nunca mais o vi...

Hoje refeito e livre de contradições ou fantasmas, sou um homem que cultua fé inabalável na força transformadora que o trabalho desempenha na vida das pessoas mas também no ócio criativo. Coube a mim, portanto encontrar a dimensão deste tempo, essencial e verdadeiro. 

Aprendi que um pai só pode amar os seus filhos pelo amor que dedica a humanidade em geral.  Assim o homem amará mais intensamente, quanto mais intensa for a coragem de suas escolhas. Não existe uma coisa sem a outra. O egoismo é pura ilusão.

Ainda que eu tenha de recomendar as gerações, prudência diante da vida - aparência de trabalho inacabado - é necessário trazer junto o limite essencial, a lealdade mundial.

Para que na derradeira pincelada o Grande Artesão do Universo, a emoldure tomado pelo "amor corajoso" legado que me trouxe até aqui!


Claudemir Sereno, 

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