Um peregrino na terra desolada


Essa reflexão não trata de um acerto de contas com o passado, muito menos tem a intenção de confortar a legião de neuróticos que vasculha as minhas redes sociais a procura de aliado ou inimigo. Portanto, estou longe das benesses do Estado, das ideologias e dogmas. E assim pretendo me manter.
Quero por hora apenas contar uma história que apesar do longo tempo transcorrido não precisasse acrescentar ou muda-la de perspectiva para que se mantivesse fiel às origens. A condição para tal desafio foi esperar. O tempo para adquirir a experiência necessária e tratar as evidencias sem paixões. E, para que se sobressaísse registrei no pequeníssimo mosaico, pedaços de frase, imagens vivas da memória pessoal, que escora as ruínas de um propósito maior. O resultado não pode ser considerado abusivo, são fatos impostos por crimes de sangue.
Domênico Tanganelli, meu tio-bisavô, homônimo de meu avô recebeu homenagens de familiares, tios, primos, inclusive minha mãe e meu irmão. Essa tradição, porém parece estar chegando ao fim. A família de origem italiana, da cidade de Firenze, região da Toscana é profundamente católica. Ou pelo menos, foi.
Pra quem não sabe, Domênico é mártir da Igreja Católica no Brasil, assassinado a tiros de bacamarte no altar em 1872, por defender escravos que se evadiram para dentro da igreja quando empreendiam fuga. Como represália a Igreja Católica suspendeu a celebração de missas na paróquia por 60 anos. Voltando as atividades em 1932, momento em que ocorreu a troca de prelazia.  
O esforço da família desde aquela época foi para que essa violência jamais fosse silenciada, revigorando a memória dele, dedicando o nome a novos rebentos. O assassinato de Domênico está registrado no portal da CNBB.
Ainda que a história seja interessante pela perspectiva histórica, quero chegar ao institucional da ordem publica comprometido por uma vida sem princípios. Condenado ao esquecimento esse registro histórico amadureceu, evoluindo da memória de um trauma familiar à realidade social enfrentada com a visão fortalecida.
Restauradora dos significados mais profundos da vida ética, de um homem cuja imaginação coloca-se em permanente diálogo com os mortos na tentativa de preservação do essencial no meio de uma ideologia da mudança proclamada por instituições seculares. Isto é, a auto-liquefação da tradição.
Por coincidência a cidade de Diamantino, no Mato Grosso não foi somente palco do assassinato do meu tio-bisavô, é também a cidade natal de Gilmar Mendes. Juiz conhecido pela defesa intransigente dos Direitos Humanos.
Longe de buscar pontos em comum entre os importantes personagens da longínqua cidade no interior do Brasil, desde já aviso não têm nada em comum, pois, enquanto um nasceu na cidade o outro lá, fora assassinado. São caminhos diferentes, diria opostos.
Também, não trata de revelar particularidades de maneira oportunista fazendo prevalecer um ponto de vista. Isso não! O tempo necessário ao qual me referi, livrou-me de questões inadequadas e de maus argumentos, aprendi a distinguir, ilusão e mentira. É isso.
O sentimento apurado superou a vontade cega de racionalizar tudo. Embora a possibilidade do justo sentido das coisas jamais seja alcançado, não é ignorando o valor das coisas que me dizem respeito, explicitamente, meus mortos, que isso se fará. A priori, o resgate da memória representa mais do que isso, ou seja é a memória se deslocando no tempo em diálogo permanente com os fatos atuais.
Quando tomei conhecimento da comunicação telemática do ex-ministro Jungmann aos amigos, envolvidos em atos de corrupção, réus no STF,  o dialogo começou, quando debochavam fazendo ilações citando, Paulo ‘Preto’, Gilmar Mendes, Senhor de Escravos, certos da impunidade, que eu não duvido. Mas o que importa é que fato veio a calhar.
Por onde passei aprendi a reconhecer o excesso de torpeza, à desarticulação da palavra necessária, que se projeta sobre a realidade para silenciar a própria dignidade a ponto de não ser mais tolerável assistir em silencio fatos iguais a esse. Na análise da comunicação o resultado foi outro. A torpeza veio com pompa, espécie de capa do sistema de prelazias e indulgencias beneficiando aos criminosos de sempre. A ordem publica comprometida com a vida sem princípios a qual me referi, foi na verdade a manifestação desastrada do seu braço executivo. 
Antes que eu pudesse digerir as atrocidades com a chancela da ordem publica, (Brumadinho, CT do Flamengo, enchentes em São Paulo, o caso do jovem Boldrin, Suzano, Marielle); Raquel Dodge decide arquivar a suspeição de Gilmar Mendes, elevando-o a perpétuo defensor dos direitos humanos.
A defesa dos direitos humanos deveria estar na ordem do dia dos Três Poderes, mas não é o caso. De tempos em tempos, sou surpreendido, o Brasil dá ares de querer superar terríveis contradições, mas logo voltasse a um rigor próprio e trabalhar sobre o corpo de suas vitimas. E, sem conseguir acabar com a guerra, lança as bases para outras ainda mais cruéis e indignas.
A realidade a qual estamos submetidos vai se infiltrando na percepção e se afirmando como verdade. Diante disso, a vida parece seguir seu rumo sem complicações, assegurado pelo deslocamento lento dos massacres e da impunidade.
O que restou dizer? Desde quando a Igreja assumiu a vocação, dedicada as vitimas da ordem publica comprometida com a vida sem princípios a Santa Sé tem se valido do silencio para promover a memória do esquecimento. Embora fique explicito que insiste em demasia em falhar, ao se colocar em oposição aos cristãos, inacreditavelmente, torna inviável o propósito da fé. Por hora devemos ser pacientes em esperar o colapso desse modelo.
Finalmente, Domênico Tanganelli não era empreendedor social, nem fazia parte de Conselho de ONG’s, nem adepto a praticas sexuais com crianças. Não era político, cabo eleitoral ou desviou recursos via empresas prestadoras de serviços na saúde publica, ministério do trabalho, etc.
Domênico era um padre, designado pela Santa Sé para organizar a fé cristã no meio do nada. Se o esforço não serviu para superar as carências da ética cristã naquela cidade de onde partiu em 1872, sustentou essa ousadia até o final de sua vida.
Esse pequeno mosaico, tem por objetivo sobrepor dimensões de realidades que jamais se cruzariam, ainda que tivessem profundamente imbricadas por questões de sangue e justiça. Nesse sentido, tanto a ocultação da corrupção oficial, quanto a história contada naquilo que lhes interessa, são irmãs siamesas. O processo investigativo para apurar desvios de agentes públicos faz-se necessário na própria história do Brasil.
Vimos o processo de beatificação de Domênico ser ultrapassado na Santa Sé por gente especialista em fazer fortuna com a miséria alheia, portanto se o tramite ainda não foi concluído depois de 147 anos não vou considerar a desqualificação da importância do tio-bisavô, demérito, mas providencial na preservação de sua imaculada memória face ao momento delicado pelo qual passa a igreja e o Brasil de maneira geral.
Domênico segue sem depender das benesses do Estado e da Igreja. Dogmas ou ideologias. E, isso faz dele um Santo na plenitude do que isso significa.

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